5 de maio de 2025

Um ano da enchente

Porto Alegre, maio de 2024

Os dias não fazem sentido, falta água, falta norte, falta perspectiva. Nem consigo escrever sobre, sei lá como descrever. É tudo surreal, tudo MUITO. [...] A água passava da altura do meu quadril quando o cara do exército me deu a mão para não tropeçar na rua em meio àquela água lamacenta, me ajudou a subir no carro gigante camuflado. Do meu lado tinha um senhor com um labrador marrom gordo, enorme e bobão. Tinha uma menina novinha tirando selfie. Uma senhora do lado dela chorava desolada. O carro altíssimo foi enchendo, enchendo, enchendo de gente e bicho. Fui de pé, me segurando numa barra de ferro igual no metrô. Consegui carregar comigo duas mochilas muito mal planejadas, mas foi o que deu. Peguei meu celular, carteira, notebook. Peguei muita roupa íntima mas pouco roupa de frio. Desci num abrigo, minha mais antiga amiga me buscou de carro.

Estou desde então na casa dela. Ainda não sei se entrou água na minha, água segue muito alta. Estou bem fisicamente e acho que ainda tenho todas as minhas coisas, mas só. Nunca estive tão ciente do nível do Guaíba, acompanhando minuto a minuto. Nunca acompanhei com tanto afinco o trabalho público de água e esgoto. Tenho amigos que perderam tudo, tudo, tudo. A cidade que cresci está metade debaixo d'água. (15/05/2024)

Quinta-feira, 23 de maio de 2024

02h52. Esse mês não termina. Depois de quase três semanas, consegui finalmente colocar os pés no meu apartamento e pude constatar que não alagou. Que alívio, uma preocupação a menos. O prédio e o entorno seguem inabitáveis, o cheiro pútrido, a lama pelas ruas e paredes, o lixo que apodrece nas residências... Tudo segue inacreditável. Por isso, sigo na casa de minha amiga. [...]

* * *

Ano passado escrevi isso acima de forma rápida, privada, tosca. Mudei de cidade. Não tenho mais aquele trabalho. Pessoas se mudaram, coisas aconteceram e deixaram de acontecer. Meu pai acolheu duas famílias. Ajudei na limpeza de duas casas e também a fazer as modelagens das roupas íntimas que estavam sendo entregues nos abrigos. Lembrei agora, até tinha esquecido. O fedor de tudo. Ainda tem gente sem casa. Caos.

4 comentários

  1. acho que foi uma das coisas mais assustadoras que eu já vi acontecendo no país de forma coletiva. nem faço ideia de como deve ser perder tudo como tanta gente perdeu... nem tem o que dizer. é só chocante de uma maneira muito maluca.

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  2. Não consigo imaginar a tensão que é passar por uma enchete dessa proporção. Que bom que você está bem, está viva.

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  3. deve ter sido assustador viver tudo isso. consigo imaginar o vazio que deve ser perder tudo, mas acho que só quem viveu mesmo sabe exatamente como é. que bom que vc ficou bem

    beijinhos, nanaview 💌

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